O ÚLTIMO GUAICURU
O “bate-pau” para de repente. Os índios ficam calados. O silêncio cai como uma suave brisa sobre as cabeças dos empoeirados guerreiros. Estão trazendo o “Velho”. É assim que os Kadiwéus, carinhosamente, chamam o ancião que chega carregado por quatro bravos. Vem pintado com as cores de guerra da tribo que o adotou. Repousa em uma rústica padiola, feita com galhos colhidos na mata de uma miserável reserva indígena, perdida num canto qualquer do Pantanal. Respeitosamente, ele é aconchegado ao lado da fogueira sagrada...
Os curumins se assustam com sua
caricata figura. Pedaço de homem, enfeitado com penas coloridas. Com um olhar
tristonho, perdido, voltado para o céu enluarado, tentando adivinhar, quem
sabe, o que dizem as estrelas. Não parece sentir qualquer emoção. Este
guerreiro não tem pernas. Foram amputadas na altura dos joelhos. Jura que foram
perdidas na batalha mais sangrenta que enfrentara. Uma história sem sentido que,
sem nenhum aviso, começa a contar. Todos fazem questão de ouvir...
O ancião, com trôpegas palavras, bate
com o punho fechado no peito e confessa: “Sou o último Guaicuru!”. Começa a
contar sua triste história. Os guerreiros fecham os olhos para ouvir. Revela
que, antes de ser piedosamente adotado pelos Kadiwéus, era um jovem bravo da
extinta tribo Guaicuru. Exímio arqueiro. Suas setas certeiras tinham feito
centenas de inimigos cavalgarem pelas pradarias celestes. Por isto ganhara um
apelido dos anciões: ‘Flecha Certeira’...
Crescera ao longo da Serra da
Bodoquena. Lugar farto em alimentos e de generosa caça. Seus antepassados já haviam
mostrado bravura e habilidade como cavaleiros nas batalhas em que venceram
soldados portugueses e espanhóis, libertando o Forte Coimbra, defendendo seu
território lutando contra guaranis, terenas e tribos do Chaco boliviano e
altiplanos dos Andes. Cansados daqueles sangrentos combates, decidiram procurar
uma terra prometida. Lugar onde poderiam ter vida longa e tranquila. Flecha
Certeira - o mais bravo dos jovens guerreiros – foi o escolhido para achar este
paraíso de muita caça e rios de águas cristalinas que imaginavam ficar entre o
Grande Rio e a Montanha de Ferro, lugar de onde vigiariam o caminho que levava até
a cidade que os caraíbas chamavam de Corumbá, onde se escondiam após atacar e
roubar os índios...
Depois de escolher seus bravos, vagaram
dias e dias pelo Chaco em busca do prometido refúgio. Certa tarde, do alto de
uma serra, Flecha Certeira avistou caras pálidas armados de paus-de-fogo,
vigiando escravos que usavam estranhas roupas e ferramentas cortando o chão do
grande morro. Desconfiado, acampou no ponto mais alto da colina. De cima, tentou
descobrir o significado daquele exército esquisito, formado por um bando de
brancos armados e um punhado de escravos famintos. Por várias luas observou
aquela gente. Quem seriam? O que estavam fazendo? Porque derrubavam a montanha
de ferro? Cada vez mais intrigado via a estranha estrada avançar na direção da
Cidade Branca...
O tempo correu rápido. Dias depois, o
sol invadindo seu esconderijo, acordou com pavorosos rugidos. Os mais altos que
já escutara. Barulho de mil trovões. Algo pesado, muito poderoso, se arrastava pela
morraria. Correu para ver o que era. Ao chegar ao alto do monte, o radiante luar
tornou fantasmagórica a visão que teve: a maior de todas as cobras que jamais vira.
Uma gigantesca sucuri. Comprida como as cachoeiras que descem das montanhas,
uivava como um lobo ferido. Soltava fogo pelas narinas. Jogava brasas e fumaça
para o céu. Exalava forte cheiro de enxofre. Dentro de sua recortada e ensolarada
barriga, Flecha Certeira viu muitos escravos que ela acabara de devorar. Visão
dos infernos. Seus bravos fugiram apavorados. Os cavalos dispararam sem rumo. Foi
difícil reunir seus guerreiros, trazê-los de volta para o morro e recapturar os
animais. No outro dia, sem nenhum sinal da sucuri, observando a maldita trilha,
Flecha Certeira decidiu lutar. Não podia deixar que o medo tomasse conta dos
corações de seus guerreiros. Não eram covardes. Chamou seus bravos e avisou: “Temos
que defender nossas mulheres, nossas crianças. Honrar nossos velhos, nosso Solo
Sagrado. Quando a Grande Sucuri voltar, nós a mataremos!”...
Várias luas passam. As armas estão afiadas
como nunca. Os cavalos, descansados e prontos para o combate. O sol se esconde.
A noite chega. Uivos estremecem a montanha de pedra com o barulho de trovões. A
Grande Sucuri voltara. Arrasta-se pelo caminho feito pelo cara pálida. Vendo o
terror estampado nas faces de seus guerreiros, o jovem chefe quis provar sua
bravura: sozinho mataria aquele monstro. Só assim recuperaria a moral de seus bravos.
Então, de repente, os incrédulos guaicurus veem quando a figura de Flecha
Ligeira, destacada no meio da grande lua cheia, galopando seu cavalo, bradando seu
grito guerra, despenca na direção da Grande Serpente...
O “Velho” com voz embargada pela
emoção, confessa que naquela maldita noite não teve tempo de descobrir que tipo
de perigo enfrentava. Não resistiu ao único embate. Foi atirado para o ar. Suas
pernas foram decepadas. O sangue tingiu de vermelho as penas de gavião de seu
cocar. Rodopiando como uma folha seca, olhou desesperado para o céu e pediu
socorro a Jaci. Arrebentou-se no chão. Desmaiou. Não viu seu cavalo ser
despedaçado pela besta fera...
Termina sua penosa narrativa. Pede para
ser levado para seu abrigo. Não tem forças para mais nada. Os Kadiwéus batem
palmas. Respeitosamente, o transportam até a sua velha oca. O pajé disfarça um
sorriso, de ironia e piedade. É o único que sabe a verdadeira versão daquela estória.
Um segredo que não conta para ninguém em respeito ao inválido guerreiro. Olha
fixamente para as estrelas, dá uma tragada em seu cachimbo, cochicha: “Flecha
Certeira, foi o primeiro guerreiro a tentar deter com flechas um trem!”...
Verdade. O velho ficara aleijado ao
atacar uma ‘Maria Fumaça’. Perdera sua última batalha para o lendário trem que
depois de uma saga de sacrifícios, heroísmos e muitas mortes na construção da
ferrovia, fazia sua primeira viagem entre Campo Grande e Corumbá! Ele e seu
cavalo foram atropelados por uma locomotiva a vapor. Pelo lendário Trem do
Pantanal...
Meninos... eu vi !!!
***** jairbuchara@hotmail.com *****

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