O LOBISOMEM DE CORUMBÁ
No fim do século XX, o Corumbaense era um dos três grandes do
futebol de Mato Grosso do Sul. Naqueles dias, eu era árbitro de futebol e, quase
sempre, o preferido por Alfredo Zamlutti Jr, presidente da Federação, para
dirigir os “clássicos” de MS. E era só por causa disso que eu, uma vez ou
outra, me via circulando pelas ruas da linda e majestosa cidade de Corumbá, capital
do nosso Pantanal...
O calor da Cidade Branca é uma de suas marcas registradas. Por estar às
margens do Rio Paraguai, Corumbá tem um quê de cidade praiana, lembrando muito
o Rio. Nas tardes de jogo a multidão revela muito do jeito de ser do povo carioca.
Eu ficava impressionado ao ver a massa de torcedores e de carros circulando
pelas ruas com a bandeira do Corumbaense, desafiando a torcida visitante. Nos
bares lotados, peixe frito e cerveja estupidamente gelada, trincando, animavam
e davam o tom das conversas. O corumbaense, com certeza, traz um gene da cidade
do Rio de Janeiro correndo em suas veias, morando em seus corações...
Certa sexta feira, feriado municipal, eu apitaria um Corumbaense X
Operário. Pela manhã visitei o Forte Coimbra, atração turística da região e acabei
almoçando por lá. Um gestor da fortaleza me presenteou com uma medalha de Nossa
Senhora do Carmo, padroeira do quartel. Disse que me protegeria bastando invocá-la
nos momentos de dificuldades...
O jogo transcorreu normalmente e sem maiores incidentes. Depois que o
jogo acabou eu estava liberado, mas só retornaria para Campo Grande no sábado no
monomotor do presidente Zamlutti. Decidi conhecer melhor o que a noite
corumbaense tinha para oferecer aos seus visitantes. Ciceroneado por Apolônio,
árbitro corumbaense, girei e circulei por bares e boates até às tantas. Bebemos
tudo que tínhamos direito. Experimentamos as delícias culinárias que Corumbá oferece
para seus visitantes. Nem vimos o tempo passar. Conversamos até perto da
meia-noite, horário em que Apolônio alegou se despediu e foi embora. Solitário,
voltei para o Santa Mônica, meu hotel...
Estava no porto. Precisava chegar até a cidade alta. Capengando, cheguei
na escadaria da XV. Teria que escalar, um a um, os 126 degraus daquele pedaço escuro
e perigoso. Ao começar meu calvário, uma aranha correu pelo paredão de pedra.
Uma caranguejeira do tamanho de meu punho fechado. Mau presságio? Catei da escadaria
metade de um tijolo e com um só golpe, cravei a aranha na muralha. O sino da
matriz anunciou a meia-noite. Cães começaram a ladrar lá no alto; com certeza
para algum casal de namorados. Logo pude ver que não era por causa disso. Os
cães desciam a ladeira perseguindo alguma coisa que vinha direto na minha
direção. Assustado, agarrei-me à grade de ferro de uma casa antiga. Pulei para
o lado de dentro. Num canto do muro de pedras, escondi-me nas sombras. Apertei fervorosamente
a medalha de Nossa Senhora do Carmo, protetora do Forte Coimbra. Se a santa era
mesmo milagrosa, livrar-me da coisa que descia a escadaria, para ela seria
fichinha...
Protegido pela grade testemunhei o sobrenatural acontecer. Uma criatura
horrível, metade homem, metade cachorro, uivando como lobo, apoiada nas patas
traseiras, despencava escadaria abaixo. Fugia dos cães. Preso em suas
mandíbulas, trazia um cão morto, estraçalhado. Enquanto a besta se aproximava,
um cheiro nauseabundo de titica de galinha invadiu o lugar. Encolhido, como um
feto, eu já esgotara o meu repertório de orações. Os cães ganiam
desesperadamente. Uivavam em delírio. Aquele que chegava ao alcance do
lobisomem era arremessado para longe por dilacerantes patadas. Então, por um
instante, ficamos cara a cara. Olhos vermelhos, de fogo. Peludo como um urso. Negro
como um urubu. Gigante como uma onça pintada. Garras de tamanduá. Sua imagem, recortada
contra a lua cheia ficou gravada em minha memória, para sempre. Estávamos frente
a frente. Daí, a coisa me encarou. Suei frio. Um calafrio percorreu minha
espinha. Desesperado apontei a imagem da santa na direção da criatura. Berrei:
“Valei-me Nossa Senhora do Carmo!”...
Cerrei meus olhos. Esperei a morte. Senti o monstro chegando cada vez
mais perto. Seu fétido hálito penetrava as minhas narinas. De repente um
silêncio profundo invadiu a escadaria. Abri um dos olhos. Ainda pude ver o homem-lobo
fugindo dos cães. Pulou um muro, escalou uma árvore, sumiu sobre o telhado da
Casa Vasquez...
Quem acreditaria nesta minha estória? Preferi que ficasse por muito tempo
no anonimato.
Foi assim, por tudo isso, que me tornei devoto da santa do Carmo. Sempre
que vou à Corumbá, faço questão de visitar sua capela...
Meninos, eu vi !!!
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