NATAL NO EXPRESSO FANTASMA...
Nasci de novo. Ressuscitei na noite de Natal...
Quase meia noite. Minha família me esperava na Vila Jacy. Eu não queria chegar atrasado para a ceia. Estava na Cophamat. Tinha ido desejar boas festas para um amigo. Agora, louco para chegar ao ponto da Gunther Hans, precisava pegar o expresso que passaria dez minutos antes da meia noite. Cinco minutos depois, desceria na Bandeirantes, pertinho da minha casa...
Olhei para o relógio. Comecei a correr, a suar frio. Cheguei na avenida a tempo de ver o expresso contornando o trevo do Imbirussu. Tudo bem. Mais um pique e, estaria dentro dele. Foi quando dei azar. Enfiei meu pé em um bueiro sem tampa. Não tive tempo para desviar. Perdi o equilíbrio. Saí catando cavacos, sem achar onde me apoiar. Bati a cabeça no meio fio...
Em meu cérebro, as ideias se misturaram. Uma nuvem negra invadiu meus pensamentos. Tudo foi se apagando. Por um segundo percebi o coletivo se aproximando. Entrei em parafuso. Mergulhei em um comprido túnel, com uma luz azulada, fraquinha, bem no fim. Apaguei. Por um instante fui envolvido pela escuridão. Depois de alguns segundos, me recuperei. Lépido, corri para o ponto, bem a tempo de embarcar auxiliado por um risonho cobrador. Estava atordoado, meio tonto...
Dentro do ônibus, tudo era estranho. A luz, amarela, pálida, mal permitia que eu identificasse as outras pessoas. O cobrador usava um capote negro, que lhe cobria todo o rosto. Apressou-me intimando: “Êi, não fique aí parado! Chega mais! Entregue sua ficha! Ache um lugar para sentar!”. Vasculhei os bolsos. Nem dinheiro, nem ficha, nada. Teria perdido na hora da queda? O cobrador insistiu: “Rápido companheiro! Entregue a ficha! Adiante meu expediente! Estamos quase no ponto final!”. Em seguida, emendou: “A propósito! Você morreu do quê?”...
Na hora não entendi. Será que tinha ouvido mal? Dei meu vale transporte para o cobrador. Ele recusou. Falei que não tinha dinheiro, nem ficha. Só aquele vale. Disse que perdera meu dinheiro ao cair num bueiro; que estava voltando para casa. Ele sorriu maliciosamente: “Acho que não! Nem eu sei para onde você vai! O Homem, lá em cima, é quem vai decidir!”...
O expresso, cada vez mais, mergulhava na escuridão. Percebi poucas pessoas em seu interior. O cobrador, parecendo que lera meus pensamentos, voltou a falar, “Você deu sorte meu chapa! Este expresso é só para esta região! À meia noite, em ponto, ele passa pegando os últimos mortos do dia! Pelo meu controle, hoje, só faltavam quatro! Você e mais três! Por isso, senta aí e vá passando sua ficha!”...
Comecei a tremer. Morto eu? Sentia (e sabia) que não estava. Retruquei: “Quem falou que eu estou morto?”. Prossegui tentando convencê-lo dizendo que não tinha ficha nenhuma, que não estava gostando daquela brincadeira. Ainda mais na noite do Natal. Pensei que fosse uma “pegadinha” de alguma TV ou rádio. O cobrador quando o ônibus parou em um ponto, irritado me avisou: “Tá chegando mais um infeliz! Você saia da frente! Não atrapalhe! Ache logo sua ficha! Depois eu falo com você!”...
Subiu um rapaz sujo de sangue, cabeça quebrada. Ficha branca na mão. O cobrador foi logo perguntando: “Morreu de quê?”. O rapaz respondeu, “Briga de gangue! No Guanandi! Alguém deu uma paulada na minha cabeça! Cai! Arrebentaram comigo! Fui furado com um estilete! Meu corpo está caído lá numa ruazinha escura, perto do Rosa Pedrossian! Por favor, me ajude avisar minha mãezinha!”. O cobrador respondeu, “Fica frio! Sua mãe vai ter um pesadelo! Vai acordar e ligar para a polícia! Os meganhas vão lhe achar! Seu corpo será resgatado!”...
O ônibus tornou a parar. Subiu outro jovem. Todo ensanguentado. Entregou uma ficha azul. Foi logo explicando: “Acidente de moto! Tomei cerveja até meia noite! Ao sentir que estava ficando bêbado, resolvi ir para casa! Quando atravessava a Souto Maior, aconteceu! Só senti a pancada na cabeça!”. O cobrador, balançando negativamente a cabeça, sentenciou: É sempre assim! Bebe, enche a cara, vai andar de moto! Depois não quer morrer!”. O rapaz retrucou: “Eu não estava pilotando moto! Eu fui atropelado por uma!”. Ouviram-se risinhos debochados. Depois todos ficaram em silêncio...
O expresso tornara a parar. Mais dois homens subiram. O primeiro, ficha amarela na mão, foi se explicando: “Eu estava no segundo andar de um sobradinho na Vila Kelen! Estava transando com uma mulher casada. O marido dela chegou! Fiquei escondido dentro de um armário! O homem ficou maluco! Bateu na mulher! Para não matar a mulher, pegou o armário e jogou pela janela! Lá de cima! Bum! Bem no meio da rua!”...
Todo mundo morreu de rir com aquela história. O cobrador, ainda sorrindo, perguntou para outro cara com pescoço quebrado, que tinha acabado de entrar: “E você? Não vá dizer também que estava namorando uma mulher casada e se escondeu dentro de um armário!”. O cara, indignado, respondeu: “Sai fora meu! Morri por causa dessa bichona! Estava indo para a missa do galo. Quando passei perto do sobradinho, caiu um armário na minha cabeça!”. A gargalhada foi geral...
O ônibus, de repente parou. Irritado, o motorista berrou para o cobrador: “Cara, presta atenção! Chega de fofoca! Não dá trela para essa gente! Tem alguma coisa errada! A gente ia pegar quatro finados! Já subiram cinco! Assim fica difícil! Dá uma geral! Confere direito os passageiros!”. Era minha última chance. Pulei do banco. Gritei para o cobrador, “Não falei que não tinha morrido? Não tenho nenhuma ficha! Não briguei! Não fui atropelado! Não caiu armário na minha cabeça! Eu só quero ir para casa, passar o Natal com minha família! Pare essa merda de ônibus! Quero descer!”...
O motorista, enquanto o cobrador conferia as fichas, retrucou: “Merda não, faz favor!”. Parou o ônibus. Fez sinal de positivo para mim. Abriu a porta e rosnou: “Desce logo cara! Nasceu de novo! Presta atenção onde pisa! Para de beber! Aproveita esta última chance! Dê um abraço na família! Feliz Natal!”...
Ao descer daquele fúnebre expresso, tropecei. De novo mergulhei naquele buraco escuro. Girei na escuridão. Dessa vez, a luz do fim do túnel estava mais perto. Abri meus olhos. Fiquei em pé. Minha perna doía. O joelho da calça rasgado. Atordoado, percebi o expresso se aproximando. Fiz sinal para parar. Ele encostou junto ao meio-fio. Entrei naquela lata velha, contente e aliviado. Ninguém entendeu quando fiz questão de desejar Feliz Natal e cumprimentar um por um dos passageiros...
Era Natal. Eu acabara de ressuscitar. Eu acho!
Meninos... eu vi !!!
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