12/12/2025

O ÚLTIMO GUAICURU...

 

O ÚLTIMO GUAICURU

 O “bate-pau” para de repente. Os índios ficam calados. O silêncio cai como uma suave brisa sobre as cabeças dos empoeirados guerreiros. Estão trazendo o “Velho”. É assim que os Kadiwéus, carinhosamente, chamam o ancião que chega carregado por quatro bravos. Vem pintado com as cores de guerra da tribo que o adotou. Repousa em uma rústica padiola, feita com galhos colhidos na mata de uma miserável reserva indígena, perdida num canto qualquer do Pantanal. Respeitosamente, ele é aconchegado ao lado da fogueira sagrada...

Os curumins se assustam com sua caricata figura. Pedaço de homem, enfeitado com penas coloridas. Com um olhar tristonho, perdido, voltado para o céu enluarado, tentando adivinhar, quem sabe, o que dizem as estrelas. Não parece sentir qualquer emoção. Este guerreiro não tem pernas. Foram amputadas na altura dos joelhos. Jura que foram perdidas na batalha mais sangrenta que enfrentara. Uma história sem sentido que, sem nenhum aviso, começa a contar. Todos fazem questão de ouvir...

O ancião, com trôpegas palavras, bate com o punho fechado no peito e confessa: “Sou o último Guaicuru!”. Começa a contar sua triste história. Os guerreiros fecham os olhos para ouvir. Revela que, antes de ser piedosamente adotado pelos Kadiwéus, era um jovem bravo da extinta tribo Guaicuru. Exímio arqueiro. Suas setas certeiras tinham feito centenas de inimigos cavalgarem pelas pradarias celestes. Por isto ganhara um apelido dos anciões: ‘Flecha Certeira’...

Crescera ao longo da Serra da Bodoquena. Lugar farto em alimentos e de generosa caça. Seus antepassados já haviam mostrado bravura e habilidade como cavaleiros nas batalhas em que venceram soldados portugueses e espanhóis, libertando o Forte Coimbra, defendendo seu território lutando contra guaranis, terenas e tribos do Chaco boliviano e altiplanos dos Andes. Cansados daqueles sangrentos combates, decidiram procurar uma terra prometida. Lugar onde poderiam ter vida longa e tranquila. Flecha Certeira - o mais bravo dos jovens guerreiros – foi o escolhido para achar este paraíso de muita caça e rios de águas cristalinas que imaginavam ficar entre o Grande Rio e a Montanha de Ferro, lugar de onde vigiariam o caminho que levava até a cidade que os caraíbas chamavam de Corumbá, onde se escondiam após atacar e roubar os índios...

Depois de escolher seus bravos, vagaram dias e dias pelo Chaco em busca do prometido refúgio. Certa tarde, do alto de uma serra, Flecha Certeira avistou caras pálidas armados de paus-de-fogo, vigiando escravos que usavam estranhas roupas e ferramentas cortando o chão do grande morro. Desconfiado, acampou no ponto mais alto da colina. De cima, tentou descobrir o significado daquele exército esquisito, formado por um bando de brancos armados e um punhado de escravos famintos. Por várias luas observou aquela gente. Quem seriam? O que estavam fazendo? Porque derrubavam a montanha de ferro? Cada vez mais intrigado via a estranha estrada avançar na direção da Cidade Branca...

O tempo correu rápido. Dias depois, o sol invadindo seu esconderijo, acordou com pavorosos rugidos. Os mais altos que já escutara. Barulho de mil trovões. Algo pesado, muito poderoso, se arrastava pela morraria. Correu para ver o que era. Ao chegar ao alto do monte, o radiante luar tornou fantasmagórica a visão que teve: a maior de todas as cobras que jamais vira. Uma gigantesca sucuri. Comprida como as cachoeiras que descem das montanhas, uivava como um lobo ferido. Soltava fogo pelas narinas. Jogava brasas e fumaça para o céu. Exalava forte cheiro de enxofre. Dentro de sua recortada e ensolarada barriga, Flecha Certeira viu muitos escravos que ela acabara de devorar. Visão dos infernos. Seus bravos fugiram apavorados. Os cavalos dispararam sem rumo. Foi difícil reunir seus guerreiros, trazê-los de volta para o morro e recapturar os animais. No outro dia, sem nenhum sinal da sucuri, observando a maldita trilha, Flecha Certeira decidiu lutar. Não podia deixar que o medo tomasse conta dos corações de seus guerreiros. Não eram covardes. Chamou seus bravos e avisou: “Temos que defender nossas mulheres, nossas crianças. Honrar nossos velhos, nosso Solo Sagrado. Quando a Grande Sucuri voltar, nós a mataremos!”...

Várias luas passam. As armas estão afiadas como nunca. Os cavalos, descansados e prontos para o combate. O sol se esconde. A noite chega. Uivos estremecem a montanha de pedra com o barulho de trovões. A Grande Sucuri voltara. Arrasta-se pelo caminho feito pelo cara pálida. Vendo o terror estampado nas faces de seus guerreiros, o jovem chefe quis provar sua bravura: sozinho mataria aquele monstro. Só assim recuperaria a moral de seus bravos. Então, de repente, os incrédulos guaicurus veem quando a figura de Flecha Ligeira, destacada no meio da grande lua cheia, galopando seu cavalo, bradando seu grito guerra, despenca na direção da Grande Serpente...

O “Velho” com voz embargada pela emoção, confessa que naquela maldita noite não teve tempo de descobrir que tipo de perigo enfrentava. Não resistiu ao único embate. Foi atirado para o ar. Suas pernas foram decepadas. O sangue tingiu de vermelho as penas de gavião de seu cocar. Rodopiando como uma folha seca, olhou desesperado para o céu e pediu socorro a Jaci. Arrebentou-se no chão. Desmaiou. Não viu seu cavalo ser despedaçado pela besta fera...

Termina sua penosa narrativa. Pede para ser levado para seu abrigo. Não tem forças para mais nada. Os Kadiwéus batem palmas. Respeitosamente, o transportam até a sua velha oca. O pajé disfarça um sorriso, de ironia e piedade. É o único que sabe a verdadeira versão daquela estória. Um segredo que não conta para ninguém em respeito ao inválido guerreiro. Olha fixamente para as estrelas, dá uma tragada em seu cachimbo, cochicha: “Flecha Certeira, foi o primeiro guerreiro a tentar deter com flechas um trem!”...

Verdade. O velho ficara aleijado ao atacar uma ‘Maria Fumaça’. Perdera sua última batalha para o lendário trem que depois de uma saga de sacrifícios, heroísmos e muitas mortes na construção da ferrovia, fazia sua primeira viagem entre Campo Grande e Corumbá! Ele e seu cavalo foram atropelados por uma locomotiva a vapor. Pelo lendário Trem do Pantanal...

Meninos... eu vi !!!

                                  ***** jairbuchara@hotmail.com *****