Quando Jenir completou 18 anos, sua avó, benzedeira no
bairro Amambaí, lhe deu um patuá costurado em um pano preto advertindo-o que,
daquele dia em diante, deveria sempre trazê-lo pendurado no pescoço. O patuá guardava
em seu interior, mistura de ervas com dentes de alhos macerados exalando um
odor azedo que o jovem fingiu ignorar. Fechava o corpo. Evitava quebranto, mal
olhado, feitiço, praga. Afastava bruxa, vampiro e lobisomem. Para conquistar
mulheres era infalível. Jenir deveria carregá-lo diuturnamente...
Era tudo que o Don Juan precisava para garantir
suas conquistas baratas. Agora poderia aprontar sem temer nenhum tipo de
represálias. Além de ter o corpo fechado, seria irresistível. Mulheres? Seriam
presas fáceis. Pensando estar protegido física e espiritualmente, o rapaz começou
a agir como um super-homem. Depois de acertar uma milhar no jogo-do-bicho,
comprou um velho Opala. Mandou envenenar o motor...
Um porteiro do Rádio Clube, conhecedor das quebradas
da Cidade Morena, revelou que sabia de um lugar onde ele poderia “queimar
pneu”: “No Parque dos Poderes, depois das dez da noite, por causa da pressão
dos filhinhos de papai, fica tudo liberado. A polícia deixa a zoeira correr
solta!”...
31 de outubro, dia do Halloween, noite das bruxas, altos
da Afonso Pena. É quase meia noite. Suando, Jenir se embriagava com o cheiro da
borracha queimada no asfalto. Gangues de punks e darks misturavam-se a jovens e
coroas mal intencionados que começavam a lotar os acostamentos. Jovens fantasiados.
Pelas pistas da avenida mais charmosa de Campo Grande, desfilavam vampiros,
duendes, dráculas, frankesteins e bruxas, vibrando e surtando com o roncar dos
motores envenenados...
O “crack” corria solto. Havia cheiro de marijuana
no ar. Jenir já havia flertado com meia dúzia de gatinhas empolgadas com seus
cavalos de paus quando percebeu na multidão uma “vampira”. Sua atenção foi
desviada para a mulher mais bonita que jamais tinha visto na vida. No meio da
fumaça dos baseados e dos escapamentos, flutuava ela. Sorrindo para ele, insinuava
uma noite plena de aventuras...
Jenir, não perdeu tempo. A pé, foi atrás da bela fantasiada.
De longe, minissaia provocante, agitando esvoaçante capa negra, ela continuava
a esbanjar seu charme. “Vai ser moleza!”, pensou o rapaz ao aproximar-se para
abordar aquela tentação. Daí, a decepção. A menina recuou. De repente, olhos
arregalados, assustada, como se estivesse sufocando, precisando respirar, ela fugiu
apavorada engolida pela na multidão. Perplexo, Jenir se recusou a desistir da
moça. Seu problema se resumia em encontrá-la. Com raiva, ficou mais arrojado.
Radicalizou nas manobras. Ganhou cada vez mais aplausos. Subia e descia a
avenida surtando como se estivesse drogado. E, de novo, ela. Desfilando na
multidão, sorria maliciosa para Jenir. Pele alva, sedosa. Cabelos negros. Unhas
vermelhas semelhantes à garras. Boca sensual, dentes perfeitos. Olhar profundo
e marcado por enigmática olheira...
Jenir desce do carro batendo a porta. Corre em
busca de sua musa. Ao tentar falar com ela, de novo é recebido pelo mesmo olhar
angustiado, apavorado, o medo desenhado em cada gesto. De novo a fuga em pânico
pela noite. O rapaz tenta persegui-la. Barrado por um grupo de ‘skinheads’,
desiste da perseguição. Desolado volta para o carro Sua frustração era tanta
que se quedou absorto, parado. Cabisbaixo, não entende o que acontecera. Irritado,
abre a porta do Opala e se joga no banco dianteiro. Nisso, o cordão de seu patuá
se enrosca na maçaneta. Arrebenta. O amuleto carambola no ar, vai parar debaixo
do banco dianteiro. Um cheiro nojento invadiu o ar. Os olhos de Jenir lacrimejam.
Suas pupilas se dilatam. Pensa: “É isso! É do patuá este maldito cheiro de alho
podre. Ela fugiu por causa do cheiro! Por que não percebi antes?”...
Os primeiros fogos comemoravam o Halloween quando
Jenir se misturou com as múmias, esqueletos e dráculas. Ápice da noite das
bruxas. O patuá? Seu patuá jaz esquecido debaixo do banco. Confiante, o rapaz corre
em busca da sua vampira. Ei-la ali. Desta vez, a mulher-morcego não foge.
Caminha lentamente enquanto Jenir segura em sua mão. Ao lado dele, deixa-se
abraçar. Não se nega. Depois de um apaixonado beijo, sem dizer uma só palavra,
o casal mergulha nas românticas quebradas dos altos d’Afonso Pena...
Primeiro de novembro. Dia de todos os santos.
Véspera de Finados. Na névoa seca da manhã, um médico legista examina o corpo
de um jovem caído ao lado da estátua do guerreiro guaicuru no Parque das Nações
Indígenas. É o cadáver de Jenir. Sem nenhum
sinal de violência, ferimento, hematoma, ou buraco de bala. No pescoço, na
jugular, dois furos. O corpo não tem uma gota de sangue. Parece um boneco de
cera...
O legista chama o delegado. Faz uma confidência. Sussurra
ao seu ouvido: “Eu não acredito em bruxas, mas, ontem foi a noite delas. Posso
jurar que este coitado foi atacado por um... vampiro!“ Respira fundo: “Como nós
sabemos que vampiros não existem, não sei o que dizer! Para não atrapalhar
nosso feriado, vou atestar morte natural! Parada cardíaca! Todo mundo vai notar
as duas marcas no pescoço. Vou ser menos formal. Evitar perguntas embaraçosas. Ele?
Se picou. Injetou cocaína ou heroína no pescoço. O coração não resistiu. Resolvido...
Morreu de overdose!”...
Pobre Jenir. Quem mandou não ouvir o conselho de sua
avó? Quem mandou abandonar seu patuá? Longe dele, não tinha o corpo fechado...
Meninos... Eu vi !!!
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